Com a bênção dos deuses
por: Cristian Ferraz, da Baixada Fluminense



Até que os leões possam contar suas próprias histórias, as histórias de caça sempre irão glorificar o caçador. O ditado africano serve de princípio para o grupo teatral Companhia de Jovens Griot’s, formado por 14 jovens, a maioria negros, moradores da Baixada Fluminense. Eles se utilizam dos ensinamentos daquele continente para montar espetáculos recheados de histórias e surpresas.

Sediada numa casa de cultura no bairro Praça da Bandeira, em São João de Meriti, a companhia exalta a cultura negra e busca despertar nos jovens atores o interesse pelo conhecimento de sua origem, fundamentada na África. O próprio nome, Griot, é um termo usado para designar os mais velhos, que seriam detentores de todos os conhecimentos. Os griots contavam suas fábulas para os mais novos a fim de perpetuar a história.

Com esse objetivo, o grupo montou o espetáculo “Igbadú – a cabaça da existência”, baseado no livro homônimo de Adilson de Oxalá. Na história sobre um universo religioso povoado por orixás e deuses africanos, os jovens representam crianças que ouvem as fábulas contadas pelos griots e ao mesmo tempo interpretam os orixás.

No palco, muito canto, dança e performances envolventes, que vão desde a utilização de técnicas de trapézio e perna de pau até pirofagia, quando um dos personagens cospe fogo. Não por acaso, a preparação para o espetáculo durou um ano e incluiu aulas de circo e interpretação, pesquisas e leituras sobre o tema.

O espetáculo estreou dia 6 de novembro, dentro do Festival Tangolomango, na Fundição Progresso, no Rio. E vai ser apresentado em São João de Meriti na Casa de Cultura da Praça da Bandeira, nos próximos dias 12 e 13, às 20h.

Piadas racistas



Atores usam técnicas circenses, como perna de pau e pirofagia, e lutam contra preconceitos

Educador com formação teatral, César Marques, de 50 anos, é um dos responsáveis pelo grupo. Ele explica que mais importante que ensinar as técnicas de teatro foi despertar nos jovens o interesse pela história de seus antepassados e valorizar suas origens.

"Todos começaram a pesquisar sobre literatura africana, sobre orixás, e acabaram descobrindo curiosidades, como a origem de vários preconceitos. Entre eles, a idéia de que os deuses e ritos de origem negra tendem sempre para o mal, quando não é verdade", diz César. Para o educador, estas são questões sobre as quais todos já ouviram falar, mas poucos têm informações.

Como a prioridade era a pesquisa e o auto-conhecimento, o teatro propriamente dito ficou em segundo plano, mas não perdeu sua importância. "Buscamos desconstruir a base teatral a fim de valorizar a naturalidade de cada um", explica ele, que utilizou um argumento simples, mas de grande importância.
"Conversamos sobre a história pessoal de cada um, sua realidade, seu dia-a-dia. Falamos dos preconceitos, das dificuldades e chegamos a contar piadas racistas uns para os outros para saber como aquilo feria cada um", relembra “E é doído. Eles sentiram na pele”, atesta.

Como maior resultado dos exercícios ficou a quebra do preconceito que os próprios jovens tinham, não só sobre os fundamentos da religião do candomblé, pano de fundo da encenação, mas pelas questões raciais. “No início todos se sentiam distantes, mas depois descobriram que o tema fazia parte da vida de cada um e acabaram se reconciliando com a história ‘maldita’ de pais, avós, tios, que de alguma forma vivenciaram tudo isso”.
O processo contou com a colaboração tanto de especialistas no tema como antigos moradores de São João de Meriti. “Criamos fóruns sobre cultura negra e religião, vimos espetáculos de dança e teatro, trouxemos pessoas do candomblé e visitamos os anciões da nossa comunidade, os nossos griot’s, para ouvir suas histórias”, conta César.


Livros, revistas, fotos e tudo mais que pudesse tirar dúvidas do grupo foram utilizados, até que os atores comprassem a idéia, se sentissem verdadeiramente integrados.

César: "Falta de conhecimento gera preconceito

“Não quero você dançando macumba!”
Toda a complexidade e a polêmica que envolve o tema mexeram com a cabeça dos jovens. “Comecei a ter sonhos com os orixás e ficava assustada. Certa noite, sonhei que minha avó chorava numa praia e falei para ela no dia seguinte. Ela me contou que quando era nova freqüentava o candomblé e incorporava Iemanjá. Isso me tranqüilizou, me deixou mais próxima do assunto e até acho que foi uma espécie de sinal”, diz Gilciana Lucas de Melo Soares, de 17 anos, cujo nome artístico é Gil Mello.

A jovem admite que por pouco não desistiu do projeto. “Tive uma crise de rejeição. Faltava aos ensaios ou vinha e não participava, mas comecei a ler, a me informar e mudei de idéia”, recorda Gil, que não foi a única e ter problemas. Sua colega Cristiane Rosa de Paula, a Cris Rosas, também de 17 anos, é categórica: “Não conhecia nada sobre essa cultura e cheguei a dizer que era macumba, então me perguntei se era isso que eu queria”, afirma.

Cris relembra que durante um ensaio aberto ocorrido há algumas semanas no Circo Voador, no Rio, a reação das pessoas foi de surpresa. “Ouvi algumas pessoas se perguntando: ´É macumba!?` Mas eu sabia que isso aconteceria, estava preparada, pois essa também foi a minha reação inicial”, admite.

A atriz conta que em casa não foi diferente. “Minha mãe criticou muito, mas depois que viu o ensaio passou a apoiar, apesar de ainda dizer que é macumba”, ri. A mãe de Gil foi além. “Ela disse: ´Não quero você dançando macumba`”, lembra a adolescente. Mais do que não se sentir à vontade com o tema, ela também não aprova a opção artística da filha, o que causa mais resistência.

“Minha mãe diz que cultura não dá futuro e quando soube a temática do espetáculo ficou ainda mais descontente. Ela pergunta por que não fazemos uma comédia como qualquer grupo de teatro e quando contei que fui a um centro espírita fazer laboratório ela afirmou que se eu me converter à religião vai ser o maior desgosto de sua vida”, diz Gil.

Conflitos religiosos
Um dos destaques da montagem, o ator João Carlos Alves Silva, de 20 anos, assim como os demais, demorou a aceitar o tema. Entre idas e vindas neste último ano, acabou aprendendo que ele nada mais era que a realidade de sua raça.
O conhecimento pessoal que tem de algumas religiões proporcionou ao jovem ator um distanciamento fundamental na hora de compor seus personagens. É que João foi criado sob os preceitos da religião evangélica, já que seus pais são fiéis da Assembléia de Deus, mas, graças a um curso livre de teatro, acabou participando da rotina da Igreja Católica.
João descobriu uma nova identidade

Há pouco mais de um ano, João se uniu à Companhia de Jovens Griot´s, para realizar seu sonho de ser artista, e acabou vivenciando a realidade do candomblé. “Acho minha história engraçada, curiosa, pois conheci todos os lados das principais religiões do Brasil, apesar de nunca ter seguido nenhuma delas efetivamente”, destaca ele, para quem a religião de origem africana era um mistério.

“Não conhecia o candomblé e sequer sabia da existência de algumas histórias que aprendi aqui, onde descobri minha identidade racial. Antes tinha preconceito, mas hoje sei que tudo envolve a fé, como nas igrejas”, ensina João.

Toda essa variedade religiosa gera confusão, especialmente com os pais evangélicos. A mãe, segundo ele, implica, mas apóia. Já o pai está irredutível. “Ele diz que o espetáculo é uma ofensa e no dia que assistiu ao ensaio aberto foi muito engraçado. Todos acompanhavam as músicas com palmas, enquanto ele ficava parado, sério”, conta João, sem esquecer a frase proferida pelo pai ao final da apresentação: “Não vou bater palmas para o demônio!”.

A desaprovação não desestimula o jovem, que se empenha para ser um artista completo. “Venho me dedicando a isso desde os 11 anos de idade. Danço axé, funk, hip hop, já fui coreógrafo de um grupo de dança e hoje trabalho com animação de festas”, enumera João, que no espetáculo Igbadú também canta e dança.

Busca da identidade

A polêmica é benéfica e motiva o grupo, segundo o educador César. “Tudo isso é natural devido à falta de conhecimento, o que gera o preconceito. Fomos criados com a idéia de que o negro e suas tradições são negativos”, acentua ele.

“As histórias que sabemos foram contadas pelos europeus e sempre trazem a escravidão como tema, o passado sofrido, a derrota. Ninguém fala dos nossos deuses, dos reis, da importância da cultura negra, e isso traz uma referência negativa, especialmente para os jovens”, defende César.

Para ele, a questão dos orixás era imprescindível na hora de falar das verdadeiras origens da raça. “Pesquisamos Pierre Verger (fotógrafo e estudioso da religiosidade africana) e Reginaldo Prandi (pesquisador, professor de Sociologia e autor do livro “Deuses Africanos no Brasil Contemporâneo”), entre outros, para defender estes conceitos. O que temos hoje no espetáculo é fruto de muita leitura e busca de identidade”, diz orgulhoso.

E ninguém fica fora desse estudo. Seguindo os ensinamentos dos Griot’s, os atores reúnem-se para contar histórias e ler livros para as crianças da comunidade, que se encantam com as novidades.

“Nos ensaios abertos colocamos livros espalhados na entrada para que elas lessem, mas sem imposição. Quando nos demos conta todos estavam folheando as histórias, se interessando. Foi uma enorme diversão”, garante César.

Orgulho negro


Os adultos também não esconderam suas reações durante as apresentações. “Grande parte da comunidade é evangélica, mas isso não impediu que eles assistissem e foi bem curioso, uma mistura de encantamento e preconceito, já que as histórias são lindas e surpreendem, mas eles ainda se assustam com o que vêem”, explica César, relembrando também uma atitude comum aos pais dos atores. “Os jovens passam os textos em casa e muitos chegam aqui dizendo que os pais reclamaram. Eles dizem: ‘Olha esses nomes que você está trazendo pra dentro de casa’”, diverte-se.

Gil Mello quase desistiu do projeto

Já os seguidores do candomblé se surpreendem com a encenação. “É que poucas vezes eles viram a religião mostrada ou discutida fora dos terreiros”, diz o educador.A verdade é que, polêmicas à parte, toda essa ebulição despertou na equipe um enorme orgulho, além do prazer em estar num projeto tão desafiador e rico em cultura. A influência já é percebida entre os jovens, que passaram a valorizar suas origens, desde as atitudes na hora de defender sua cultura e história até a moda criada pelos seus antepassados.

“Observei que todos tinham uma necessidade de negar seus traços, especialmente no que se refere ao cabelo. As meninas esticam, alisam, querem ficar como as loiras. Nunca sugeri que mudassem, mas com o tempo notei a mudança, que foi natural”, garante César, explicando que essa atitude é mostrada no espetáculo.

Homem versus mulher

“No início as crianças, interpretadas por eles, estão brincando com bonecas Barbie, loiras, exaltando aqueles cabelos, aqueles traços. Até que chega um Griot e começa a contar as histórias. Eles então começam a prestar atenção, se envolvem com aquilo e no final entram com bonecas negras, como eles”, antecipa.

“Igbadú – a cabaça da existência” mostra ainda a luta travada entre os orixás masculinos e femininos pela liderança, o poder, o que remete a situações contemporâneas, como explica César: “O passado e o contemporâneo se misturam. Há coisas que acontecem até hoje, mas mostramos a partir da visão dos orixás, que tiramos de pequenos livros chamados de orikís, que são uma espécie de salmos”.

A sexualidade, a sensualidade, a separação entre o céu e a terra, a força das mulheres, as artimanhas dos homens para conquistá-las, tudo é encenado poeticamente através de danças e rituais de origem africana e ao som de músicas de Dorival Caymmi e cânticos interpretados ao vivo por três músicos, pelos atores e com o auxílio de violão, percussão e contrabaixo.