por: Cristian Ferraz, da Baixada Fluminense
Piadas racistas
"Todos começaram a pesquisar sobre literatura africana, sobre orixás, e acabaram descobrindo curiosidades, como a origem de vários preconceitos. Entre eles, a idéia de que os deuses e ritos de origem negra tendem sempre para o mal, quando não é verdade", diz César. Para o educador, estas são questões sobre as quais todos já ouviram falar, mas poucos têm informações.
Como a prioridade era a pesquisa e o auto-conhecimento, o teatro propriamente dito ficou em segundo plano, mas não perdeu sua importância. "Buscamos desconstruir a base teatral a fim de valorizar a naturalidade de cada um", explica ele, que utilizou um argumento simples, mas de grande importância.
Como maior resultado dos exercícios ficou a quebra do preconceito que os próprios jovens tinham, não só sobre os fundamentos da religião do candomblé, pano de fundo da encenação, mas pelas questões raciais. “No início todos se sentiam distantes, mas depois descobriram que o tema fazia parte da vida de cada um e acabaram se reconciliando com a história ‘maldita’ de pais, avós, tios, que de alguma forma vivenciaram tudo isso”.
Livros, revistas, fotos e tudo mais que pudesse tirar dúvidas do grupo foram utilizados, até que os atores comprassem a idéia, se sentissem verdadeiramente integrados.
“Não quero você dançando macumba!”
Há pouco mais de um ano, João se uniu à Companhia de Jovens Griot´s, para realizar seu sonho de ser artista, e acabou vivenciando a realidade do candomblé. “Acho minha história engraçada, curiosa, pois conheci todos os lados das principais religiões do Brasil, apesar de nunca ter seguido nenhuma delas efetivamente”, destaca ele, para quem a religião de origem africana era um mistério.
“Não conhecia o candomblé e sequer sabia da existência de algumas histórias que aprendi aqui, onde descobri minha identidade racial. Antes tinha preconceito, mas hoje sei que tudo envolve a fé, como nas igrejas”, ensina João.
Toda essa variedade religiosa gera confusão, especialmente com os pais evangélicos. A mãe, segundo ele, implica, mas apóia. Já o pai está irredutível. “Ele diz que o espetáculo é uma ofensa e no dia que assistiu ao ensaio aberto foi muito engraçado. Todos acompanhavam as músicas com palmas, enquanto ele ficava parado, sério”, conta João, sem esquecer a frase proferida pelo pai ao final da apresentação: “Não vou bater palmas para o demônio!”.
A desaprovação não desestimula o jovem, que se empenha para ser um artista completo. “Venho me dedicando a isso desde os 11 anos de idade. Danço axé, funk, hip hop, já fui coreógrafo de um grupo de dança e hoje trabalho com animação de festas”, enumera João, que no espetáculo Igbadú também canta e dança.
Busca da identidade
A polêmica é benéfica e motiva o grupo, segundo o educador César. “Tudo isso é natural devido à falta de conhecimento, o que gera o preconceito. Fomos criados com a idéia de que o negro e suas tradições são negativos”, acentua ele.
“As histórias que sabemos foram contadas pelos europeus e sempre trazem a escravidão como tema, o passado sofrido, a derrota. Ninguém fala dos nossos deuses, dos reis, da importância da cultura negra, e isso traz uma referência negativa, especialmente para os jovens”, defende César.
Para ele, a questão dos orixás era imprescindível na hora de falar das verdadeiras origens da raça. “Pesquisamos Pierre Verger (fotógrafo e estudioso da religiosidade africana) e Reginaldo Prandi (pesquisador, professor de Sociologia e autor do livro “Deuses Africanos no Brasil Contemporâneo”), entre outros, para defender estes conceitos. O que temos hoje no espetáculo é fruto de muita leitura e busca de identidade”, diz orgulhoso.
E ninguém fica fora desse estudo. Seguindo os ensinamentos dos Griot’s, os atores reúnem-se para contar histórias e ler livros para as crianças da comunidade, que se encantam com as novidades.
“Nos ensaios abertos colocamos livros espalhados na entrada para que elas lessem, mas sem imposição. Quando nos demos conta todos estavam folheando as histórias, se interessando. Foi uma enorme diversão”, garante César.
Orgulho negro
Os adultos também não esconderam suas reações durante as apresentações. “Grande parte da comunidade é evangélica, mas isso não impediu que eles assistissem e foi bem curioso, uma mistura de encantamento e preconceito, já que as histórias são lindas e surpreendem, mas eles ainda se assustam com o que vêem”, explica César, relembrando também uma atitude comum aos pais dos atores. “Os jovens passam os textos em casa e muitos chegam aqui dizendo que os pais reclamaram. Eles dizem: ‘Olha esses nomes que você está trazendo pra dentro de casa’”, diverte-se.
Gil Mello quase desistiu do projeto
Já os seguidores do candomblé se surpreendem com a encenação. “É que poucas vezes eles viram a religião mostrada ou discutida fora dos terreiros”, diz o educador.A verdade é que, polêmicas à parte, toda essa ebulição despertou na equipe um enorme orgulho, além do prazer em estar num projeto tão desafiador e rico em cultura. A influência já é percebida entre os jovens, que passaram a valorizar suas origens, desde as atitudes na hora de defender sua cultura e história até a moda criada pelos seus antepassados.
“Observei que todos tinham uma necessidade de negar seus traços, especialmente no que se refere ao cabelo. As meninas esticam, alisam, querem ficar como as loiras. Nunca sugeri que mudassem, mas com o tempo notei a mudança, que foi natural”, garante César, explicando que essa atitude é mostrada no espetáculo.
“No início as crianças, interpretadas por eles, estão brincando com bonecas Barbie, loiras, exaltando aqueles cabelos, aqueles traços. Até que chega um Griot e começa a contar as histórias. Eles então começam a prestar atenção, se envolvem com aquilo e no final entram com bonecas negras, como eles”, antecipa.
“Igbadú – a cabaça da existência” mostra ainda a luta travada entre os orixás masculinos e femininos pela liderança, o poder, o que remete a situações contemporâneas, como explica César: “O passado e o contemporâneo se misturam. Há coisas que acontecem até hoje, mas mostramos a partir da visão dos orixás, que tiramos de pequenos livros chamados de orikís, que são uma espécie de salmos”.
A sexualidade, a sensualidade, a separação entre o céu e a terra, a força das mulheres, as artimanhas dos homens para conquistá-las, tudo é encenado poeticamente através de danças e rituais de origem africana e ao som de músicas de Dorival Caymmi e cânticos interpretados ao vivo por três músicos, pelos atores e com o auxílio de violão, percussão e contrabaixo.